O impacto das eleições estadunidenses no Sul Global

Seja Trump, seja Kamala, o Brasil e os demais países desenvolvidos não estão entre as prioridades dos EUA

Por Françoise Terzian

O ano de 2024 já foi chamado de “ano do Super Bowl da democracia”. Motivo: duas bilhões de pessoas, o equivalente a cerca de 25% da população global, votarão em 75 eleições ao longo do ano. Todas ditarão os rumos de cada país, mas uma em especial trará profundos reflexos para o restante do globo. Donald Trump ou Kamala Harris? O mundo está de olho na polarizada eleição presidencial estadunidense, cujos impactos serão significativos, independentemente do nome eleito. “Os Estados Unidos, até hoje, são uma das grandes potências. Eles ainda exercem um grande poder sobre as instituições internacionais”, observa Suhayla Khalil, professora de Política Internacional e de Relações Internacionais.

Quem for eleito determinará como ficará a política externa, que, por sua vez, afetará não só as relações bilaterais, mas o multilateralismo e a forma como as decisões serão tomadas em âmbito global. Os reflexos serão políticos e econômicos. Um exemplo? As taxas de juros nos EUA alteram os fluxos globais de capitais e de investimentos. Um comércio mais protecionista, por exemplo, terá um impacto palpável sobre os demais países do mundo.

No século 20, os EUA foram o principal parceiro comercial do Brasil. Hoje, ainda figuram nessa lista, tendo sido desbancados pela China em 2009. “Isso, no entanto, não significa que os EUA não sigam como um parceiro importante em petróleo e aço”, explica a professora. E a promessa de campanha de Trump é criar tarifas universais sobre produtos importados — algo já feito na era do governo Reagan e que coloca mais pressão sobre países em desenvolvimento — e aumentar o protecionismo comercial. “Essa política do ‘America first’ vai afetar o Brasil e também o Sul Global, composto por países exportadores de commodities. Os interesses dos EUA tendem a prevalecer, resultando em uma política mais isolacionista e trazendo efeitos para o multilateralismo”, analisa Khalil.

Para alguns especialistas, a verdadeira leitura do slogan “America first” deveria ser “America alone”, dado que as políticas favorecerão a indústria americana em detrimento de todas, em especial da chinesa. “Mas, sendo o Trump ou a Kamala na Casa Branca, a relação com a China será complexa. Com Trump no poder, essas relações serão ainda mais problemáticas e com uma posição mais agressiva”, alerta a especialista.

Há ainda um grande temor em torno da possibilidade real e crescente de os EUA se retirarem dos grandes pactos globais, como o da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), caso Trump seja eleito mais uma vez. “Dada a personalidade e imprevisibilidade de seu governo, há esse risco em casos extremos. Mesmo que não aconteça, Trump já deu declarações, por exemplo, de que a guerra da Ucrânia deveria ser encerrada logo”, lembra Khalil.

Sob o governo Trump, a aprovação internacional da liderança dos EUA caiu para um nível historicamente baixo, com a confiança nele quase no mesmo nível da confiança no presidente chinês Xi Jinping. A saída de Trump de instituições multilaterais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e de tratados como o Acordo de Paris, além de políticas restritivas de imigração, tiveram efeito negativo para a sua imagem e a do país norte-americano. As visões globais sobre os EUA e a China pioraram durante a pandemia.

E o Brasil? “A relação de Trump com Lula não vai ser muito amistosa. Os dois não têm relações próximas. O governo Lula vê o ‘trumpismo’ de uma forma muito próxima ao ‘bolsonarismo’. Uma possível eleição de Trump dificultaria as relações entre Brasil e EUA. Ao mesmo tempo, é importante dizer que a relação entre os dois países é antiga, de aliança costurada no início do século 20 pelo Barão do Rio Branco [ministro das Relações Exteriores do Brasil de 1902 a 1912]”, pondera, acrescentando que essa relação não se rompeu em momentos menos ou mais favoráveis. É esperado, contudo, que, com Trump no poder, fique mais difícil. Os objetivos são díspares, as agendas são divergentes. O governo Lula, por exemplo, tem se posicionado em prol do meio ambiente e da questão climática. Sua política externa é universalista e prioriza a agenda do Sul Global. 

O agronegócio, grande estrela do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, não deve ser estremecido, uma vez que o setor é poderoso, bem-estruturado e conta com um bom lobby nos EUA.

E mais: uma possível vitória de Trump favorecerá partidos de extrema-direita ao redor do mundo. “O ‘trumpismo’ forte alimenta o ‘bolsonarismo’. Isso pode ter efeitos indiretos no Brasil nas próximas eleições”, pontua.

A professora percebe ainda que, tanto para Trump quanto para Biden — agora personificado no papel de Kamala —, não há a menor preocupação com outras regiões do mundo. “Para ambos, África e América Latina não são prioridade.”

A candidata democrata, por sua vez, é considerada “menos pior para o Brasil”, já que ela deve dar uma certa continuidade à gestão do governo Biden e também manter o olhar no multilateralismo. “Em algum aspecto, ela é mais positiva para o Brasil, mas não completamente”, avisa Khalil. 

Além de um presidente

O professor de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Moises Marques lembra que “a política externa dos Estados Unidos não é definida pela presidência. Qualquer acordo comercial americano precisa ter uma licença do Congresso para que aquilo seja validado. Em última instância, quem faz a política nos EUA é o Congresso. E tem muito pouca diferença entre democratas e republicanos em relação a alguns temas, como China”.

A diferença entre os dois candidatos para o Brasil estará mais no trato, acredita. “Se ganhar o Trump, é muito difícil que ele não venha com uma postura revanchista, mais na forma que na realidade. A retórica depende do Congresso. Já no caso da Kamala, dos democratas, eles sempre têm uma posição mais amena. Pelo menos há um jogo de cena. É muito mais tranquilo negociar. Muda mais na coisa cosmética que na coisa real. Em resumo, será difícil o relacionamento do Sul Global com os EUA, ganhe o Trump ou a Kamala”, afirma o especialista.

Além de encarar problemas fiscais e de inflação elevada, os EUA entram numa fase de enfrentamento de perda de liderança, enquanto a China avança. Em tese, analisa Marques, a China está no Sul Global, assim como a Índia. Se os democratas ganharem, serão mais fáceis o diálogo e as visitas bilaterais.

Para o professor, um caminho possível é que o Sul Global ganhe mais autonomia e busque sua própria rota — e isso inclui o Brasil e Lula. “A postura do governo Lula é parecida com a do [ex-presidente Ernesto] Geisel de 50 anos atrás. Ele não está preocupado com o que Washington pensa ou não, mas nas suas prioridades”, avalia. “Trata-se de uma postura autonomista interessante. Ele vai buscar alternativas com quem for. Cada um procura seus interesses. É como se estivéssemos vivendo um ‘cruzeiro just for singles’.”

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