- Revista
- 13.03.2024
- Redação
Sai a PEC 32, entra a transformação do Estado
Segundo ministra Esther Dweck, governo já não trata mais das mudanças no funcionalismo público por meio de emenda constitucional e aposta em pacote de propostas
Por Nina Gattis
Atual cerne de conflitos de opinião entre Executivo e Legislativo, a reforma administrativa está entre os destaques das coberturas política e econômica de 2024 — e o cenário deve permanecer quente durante todo o ano. Em meio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020 e à recusa do Planalto em tocar uma pauta do governo anterior, há servidores pedindo por reajuste salarial, desentendimentos entre Luiz Inácio Lula da Silva e Arthur Lira e, claro, a ministra Esther Dweck, da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), buscando uma alternativa viável e, de preferência, rápida.
Especialista no problema que se tornou pauta do Congresso neste início de ano, Dweck foi, desde o começo do terceiro mandato do presidente Lula, a aposta para gerir a nova pasta dedicada à melhoria da capacidade do Estado.
Em entrevista exclusiva à Revista Esfera, a ministra já descarta a via da PEC 32 — que “não vai melhorar em nada” o funcionalismo público, segundo ela — e afirma que sua equipe defende que a reforma do Estado, por eles chamada de “transformação do Estado”, seja feita por meio de um pacote de medidas.
Com 6.640 vagas para 21 órgãos públicos federais, o Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), conhecido como o “Enem dos concursos” diante de seu caráter federal e agrupador, é uma das etapas da transformação pretendida pela ministra. Foram 2,65 milhões de candidatos, e o novo formato bateu recorde entre os certames com maior quantidade de inscritos na história do País. Fortemente comemorado pelo MGI, o número expressivo sugere que as medidas alternativas, se empacotadas e esclarecidas para o Congresso, podem substituir a PEC 32.
Esfera Brasil: O CPNU foi elogiado, principalmente pelos editais muito bem elaborados. Mas também ficaram algumas dúvidas e críticas, inclusive sobre a concentração da administração pública federal aqui, no Distrito Federal. Há a intenção de mudar esse cenário com o novo modelo de concurso?
Esther Dweck: Nesse primeiro concurso, tem vaga para o Brasil inteiro. Claro, a maior parte das vagas é em Brasília, mas a gente tem vagas em vários órgãos, espalhadas pelo Brasil, que vão estar alocadas em diferentes localidades. No caso da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], você já escolhe a região em que quer trabalhar. Em outros não, mas tem vagas espalhadas pelo País. Tem órgãos no Rio, por exemplo, então existe uma dispersão.
Só que a nossa lógica não é só captar gente do local, é o contrário. É trazer gente para Brasília mesmo, porque, na nossa visão, é muito importante melhorar a diversidade de pessoas que estão trabalhando na administração pública federal, onde a maior parte das políticas é pensada. E, quanto mais conhecimento da realidade do País, melhor vai ser a formulação de políticas.
Para quem conhece, Brasília já é muito diversa por isso: vem gente do Brasil inteiro trabalhar. Mas acaba que, quem consegue vir fazer prova em Brasília é quem tem dinheiro, quem tem uma condição de vida um pouco melhor, pois pode pagar uma passagem, um hotel, ou quem tem algum conhecido que mora em Brasília e pode ficar na casa, sabe? Só que não era uma realidade da maior parte da população brasileira. Por isso a ideia de levar o concurso para as pessoas e não fazer com que elas venham até aqui para fazer as provas.
Existe perspectiva de abertura de novos editais e concursos para a administração pública federal no formato do CNPU? Há algum modelo parecido previsto para as administrações públicas estaduais e municipais?
A nossa ideia é que, durante este ano, tenhamos outras vagas autorizadas, assim como nos próximos anos, e que a gente consiga realizar nesse formato mais vezes, bianualmente ou trienalmente.
Não é uma coisa que dá para fazer anualmente, porque requer uma quantidade grande de vagas, mas a nossa ideia é que a gente consiga fazer isso de forma mais recorrente.
Em relação aos estados e municípios, não somos nós que autorizamos, mas alguns nos pediram para entender um pouco sobre o novo modelo, pois eles gostariam de replicar nos seus estados e municípios. Quanto a isso, sim, estamos começando a conversar, mas as autorizações das vagas dependem de cada uma de suas esferas.
O CNPU é uma das alternativas à PEC 32 e já resolve uma parte do ‘problema’. Com o sucesso do novo formato — que é só o começo da solução —, há alguma chance de que a PEC 32 ainda avance ou é mais provável que o governo insista em um pacote de alternativas e tente barrar a PEC?
Quando o presidente Lula decidiu criar o Ministério da Gestão e da Inovação, ele pensou muito em ter um órgão focado na melhora da capacidade do Estado de prover políticas públicas. Aqui no Ministério, a gente tem três grandes áreas: uma de gestão de pessoas, uma de gestão de processos e uma de ativos públicos.
Portanto, temos um ministério bastante grande em termos de servidores e de temas. E a gente está desde 1º de janeiro de 2023 fazendo o que as pessoas chamam de ‘reforma administrativa’, mas que a gente tem chamado de uma ‘transformação do Estado’.
Na nossa visão, são três partes. A primeira está ligada à gestão de pessoas, de pessoal, é a etapa inicial, a entrada, o concurso — mas não só isso. É a etapa de avaliação de desempenho dos servidores, de pensar a estruturação, organizar melhor as carreiras e pensar a forma de progressão nas carreiras. Também tem uma característica muito importante de transformação digital, que é justamente o que vai agilizar, acelerar, dar grande produtividade aos servidores. A transformação digital é um foco muito importante aqui do Ministério.
As outras duas partes são sobre organizações e processos. E aí acho que temos uma experiência muito interessante, até mesmo para o setor privado, que é a Secretaria de Serviços Compartilhados, uma área de suporte que já assume 13 ministérios. Ou seja, as mesmas que fazem parte da secretaria estão fazendo atividades de gestão de pessoas, de contratações, de TI [Tecnologia da Informação], para a execução orçamentária e financeira de 13 ministérios. É uma economia de recursos enorme, porque são as mesmas pessoas, com a mesma estrutura, fazendo um trabalho para vários ministérios. A ideia é que incorpore até 20 ministérios.
Também planejamos uma revisão do Direito Administrativo Brasileiro, que trata um pouco de como funcionam os órgãos de administração pública federal. Estamos discutindo a avaliação das políticas públicas pelos usuários, ou seja, pelo cidadão. São várias medidas para a transformação do Estado.
E no que essas medidas se diferenciam da PEC 32 propriamente dita?
A PEC 32 é focada, digamos assim, em uma só parte da transformação do Estado, que é mais a questão de pessoal, com um foco que é bem diferente do nosso. Ela fala muito sobre o fim da estabilidade do serviço público, na possibilidade de oferta mais privada de atividades públicas. O texto é muito contrário à nossa visão do que precisa ser feito.
O que a gente gostaria, com o Congresso, é de ter um pacote de medidas que seja consensuado. Nosso foco não é a PEC 32. Na nossa visão, não precisaria de uma emenda constitucional para fazer uma alteração para garantir que o Estado seja capaz de prestar um melhor serviço, que seja menos burocrático, mais ágil, que faça uma transformação digital, que dê um ganho de produtividade gigantesco para o setor público. Esta é a nossa lógica, e não o foco em pessoal, no fim da estabilidade.
Quais vocês imaginam que seriam os meios para a transformação do Estado, então?
Atos infralegais, do próprio Ministério [da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos], ou de um grupo de ministérios, e projetos de lei também. A gente quer o Legislativo para discutir quais projetos de lei seriam prioridade para uma melhor capacidade de prestação de serviço público.
Portanto, a PEC 32 definitivamente não é o que o governo Lula entende por reforma administrativa?
Não é. Não é nossa visão, mas, claro, estamos abertos ao debate. Gostaríamos de debater, ouvir sugestões, tanto que criamos uma Câmara Técnica [de Transformação do Estado] no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Conselhão, que tem a participação de organizações da sociedade civil, de empresários do setor privado, assim como de servidores, para debater o que seria essa proposta de transformação do Estado. Estamos levando nossa proposta, ouvindo também um retorno deles com o que é prioritário para, aí sim, o Judiciário e o Legislativo pensarem em uma agenda comum. Nosso foco está em melhorar a relação do Estado com as pessoas e com as empresas.
Quais os outros defeitos, além do foco apenas na questão do pessoal, da PEC 32 na avaliação técnica do MGI?
A PEC não vai melhorar em nada. Talvez possa até piorar, na nossa visão. E a PEC ainda tem uma coisa que pouca gente está olhando: faz um aumento de gastos muito claro. A redução de gastos que as pessoas falam muito não é clara, e o aumento de gastos é muito claro, porque o texto tem uma proposta de mudança na Previdência, voltando com benefícios que as forças de segurança tinham, mas que foram retirados em outras emendas constitucionais da Previdência. Eles voltariam com essa PEC e afetariam todas as esferas, desde o município, porque traz a Guarda Municipal, os estados, com as polícias, até o governo federal. Com isso, na verdade, a gente vê que há uma contrarreforma.
Além disso, a própria PEC 32 não abrange todo mundo, ela deixa de fora os militares e membros dos Poderes, ou seja, juízes, membros do Ministério Público, enfim, não abrange todo mundo. Na nossa visão, ela não resolve o problema, não melhora de fato a capacidade de serviços, pode precarizar, pode gerar uma competição desnecessária dos servidores em vez de ter algo que de fato vai melhorar, vai agilizar, vai tornar o Estado mais eficaz, mais eficiente.
E quanto ao Projeto de Lei 1.958/2021, que prorroga por 25 anos e amplia para 30% a reserva de vagas em concursos públicos para pessoas negras? O governo tem acompanhado isso? O aperfeiçoamento desta ferramenta faz parte da transformação do Estado?
Sim, está totalmente incluso. E a gente, na verdade, trabalhou para que o Ministério tenha um olhar sobre isso. A diretora [de Provimento e Movimentação de Pessoal] é a [Maria Aparecida] Chagas [Ferreira], que está no meu gabinete tocando o tema sobre o PL das Cotas, visto que a lei atual vence em junho de 2024, este ano. Já estava em nosso radar desde o ano passado a necessidade de ter uma nova lei aprovada. E a gente trabalhou junto com o Ministério da Igualdade Racial na elaboração de uma minuta de proposta de lei, que foi entregue ao senador Fabiano Contarato, relator na Comissão de Direitos Humanos [CDH] do Senado, e foi aprovada.
Agora, a proposta está na Comissão de Constituição e Justiça [CCJ] do Senado, e a gente espera que também seja aprovada no início do ano, para que possa ainda ser aprovada no Senado e, depois, na Câmara. A gente gostaria de ter a aprovação dessa lei até o meio do ano.
É um projeto prioritário para o Ministério. Estamos superalinhados com o texto que foi aprovado na CDH recentemente, no final do ano passado, nós e o Ministério da Igualdade Racial. Estamos fazendo várias inovações e melhorias na lei anterior para implementação dessas cotas.
Os governos anteriores tiveram que, por imposições legais, aplicar as cotas, mas não acontecia uma avaliação [da lei], e quase não tivemos novos concursos. Então, na prática, a lei estava valendo em uma baixa quantidade de concursos.
O fim dos supersalários e a reestruturação das carreiras públicas também estão no pacote de medidas que substitui a PEC 32?
Estamos discutindo isso. A reestruturação de carreiras com certeza. Vamos publicar em breve diretrizes para as carreiras públicas, que incluem a simplificação e tentar diminuir o quantitativo, porque temos carreiras distintas, com as mesmas atribuições, mas nas quais se ganha igual. Vamos organizar isso.
Ao mesmo tempo, estamos discutindo a questão do teto do funcionalismo. O que acontece é que, principalmente em outros Poderes, não tanto no Executivo, as remunerações acabam sendo acima do teto, gerando salários muito altos em alguns casos. Não é uma regra, não é tanta gente assim, mas acontece.
A minuta [Projeto de Lei do Senado – PLS 449/2016] que estava lá no Congresso foi aprovada no Senado uma vez. Teve modificações na Câmara [como PL 6.726/2016], voltou ao Senado e, hoje, está no Senado. Um texto que traz muitas melhorias, né? Mas precisa ser debatido, ser priorizado.
Se a gente já não trata mais a reforma administrativa como a PEC 32, e a transformação do Estado é gradual, então a mudança do funcionalismo é uma pauta de fato para 2024 ou que vai ficar efetivamente para 2025?
Na verdade, a pauta começou em 2023 e, em 2024, talvez tenha uma publicidade maior, seja mais conhecida. A gente está para fechar um balanço do que já foi feito, para as pessoas tomarem conhecimento. E, no âmbito da Câmara Técnica, houve um apelo muito grande de dois membros para que o governo apresentasse uma proposta mais concreta, mesmo que em vários projetos, vários atos, mas que desse, digamos, uma ‘empacotada’ na proposta, para ficar clara qual é a posição do governo.
A gente entendeu: eles questionaram muito que a posição do governo não está tão clara, não está tão simples, está solta. Então estamos estudando o apelo que veio da Câmara Técnica. Talvez, com o apoio deles, a proposta empacotada fique para este ano.