Temos de nos preparar para tudo

Rumos da educação brasileira preocupam diante de um mundo que redefine a geopolítica global da produção de conhecimento

Por Carlos Tautz

Após dois anos de idas e vindas regimentais, a nova Política Nacional de Ensino Médio foi sancionada em 31 de julho e imediatamente aprofundou dúvidas e debates sobre se o sistema de ensino brasileiro vai criar profissionais capazes de conduzir o Brasil já no curto prazo. A Lei nº 14.945/2024 determina que deve começar em 2025 a implementação do Novo Ensino Médio — para estudantes da primeira série do ensino médio. A partir de  2026, as regras passam a valer também para a segunda série e, em 2027, para a terceira.

A política que reestrutura o setor médio educacional também tem repercussões diretas e imediatas em toda a estrutura produtiva. Na prática, vai redefinir a forma, a velocidade e os atores políticos e econômicos que vão liderar a inserção do País em um mundo que, ao reconfigurar o fenômeno que até hoje chamamos de “globalização”, altera hegemonias, encurta e relocaliza sistemas de produção complexos, em um planeta que já enfrenta e vai se deparar com guerras irrestritas cada vez mais perigosas.

“Temos de estar preparados para tudo”, alerta Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP), atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-ministro da Educação. “O Brasil tem uma dimensão territorial, demográfica e de Produto Interno Bruto [PIB] que torna necessária a formação em absolutamente tudo, até nos assuntos que podem parecer menos pertinentes, como Antiguidade Clássica, Pré-Histórica, Egiptologia, Assiriologia. Não há limite”, acrescenta Ribeiro.

O presidente do SBPC avalia que, em ocasiões como essas, é muito comum a abordagem de profissões do presente, “supondo-se que vão continuar sendo as mesmas”. Em geral, diz o professor, esse debate se dá no campo da informática e dos seus usos, “mas, eu tenho dúvidas sobre se podemos chamar a inteligência artificial de profissão, por exemplo”. 

Ribeiro enfatiza que as características sociais, econômicas e até físicas e geográficas do Brasil em sua escala continental exigem um olhar abrangente e sistemático. No mesmo sentido, mas com outra ideia de solução, Ricardo Cavallini, professor da Singularity University, admite que “não estamos” preparados para o que vem pela frente. “Mas não se trata de apontar culpados. Todos — profissionais, empresas, governo e instituições — precisamos enfrentar a mudança que a tecnologia traz em termos de comportamento, cultura e negócios. A grande preocupação costuma estar nas áreas que não têm agilidade para mudanças, como a das políticas públicas e a da educação pública, mas existe um problema anterior a isso: será que os responsáveis já entenderam o tamanho do desafio?”, questiona Cavallini, que também é embaixador do Sloan Management Review Brasil, seção do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais importantes instituições na área de pesquisas para o avanço da educação.

O professor enumera os desafios, que estão sequenciados e interligados. “São muitos eixos a serem trabalhados: educação, infraestrutura, tecnologia e inovação, fomento intenso ao empreendedorismo etc. A falta de saneamento básico interfere nos resultados da educação, que, por sua vez, interfere no empreendedorismo, o qual, por sua vez, interfere na nossa capacidade de gerar novos empregos e novas tecnologias. Se a conta da Previdência já apresenta desafios, imagine em um cenário onde a população vive mais e podemos ter menos empregos devido à inteligência artificial e outras tecnologias”, destaca Cavallini. Sua avaliação indica a necessidade de que o Brasil adote a educação como eixo ao qual outros setores estão ligados, e que, interconectados, apontam para a necessidade de se retomar projetos nacionais de desenvolvimento.

Há quem pondere e, de certa forma, identifique uma conexão imediata e lógica com o sistema de ensino superior, que mais uma vez enfrenta o aprofundamento de uma crise. “Em um cenário onde teremos que criar novos empregos e promover muita inovação, precisamos fomentar o empreendedorismo como nunca antes”, opina Cavallini.

Sem o dedo do mercado

“A reforma do ensino médio consolidou a noção de que os jovens podem ter uma formação mais aligeirada quanto a um conhecimento integrado da natureza e da sociedade. Mas, o País não está mirando uma economia de maior complexidade no seu aparato educativo e de formação para o trabalho”, explica Ricardo Lehrer, que é ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Pragmaticamente, Lehrer analisa que “temos uma base produtiva no País que, excetuando pequenos nichos aglutinadores de inovação tecnológica, como a Petrobrás, não está inserida nos circuitos que requerem força de trabalho complexa”. “Qual é esse desdobramento de um país que não tem uma mirada para uma inserção mundial em cadeias produtivas de alta complexidade?”, indaga. 

Para o ex-reitor, que observa o problema da mesma perspectiva que o professor Renato Janine Ribeiro, não é suficiente adestrar a mão de obra para ocupar postos de trabalho que requerem pouca qualificação: “Precisamos calibrar o sistema educacional para um horizonte civilizatório, em que o conhecimento esteja à altura dos desafios que a humanidade tem de enfrentar para além da economia”. 

O amplo horizonte de dúvidas e dimensões no intrincado setor da educação indica que a questão está longe de ser resolvida.

“Temos uma enorme confusão, que é a mistura de investimento entre a ciência básica e a ciência aplicada a tecnologias inovadoras vinculadas a domínios tecnológicos que não estão presentes necessariamente nos setores produtivos, visto que somos um país capitalista dependente. Com isso, não temos nem recursos voltados para pesquisa e desenvolvimento, ou seja, para a inovação tecnológica”, afirma Lehrer. Tal inovação, defende, “deveria ser feita pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], com uma escala de recursos de uma outra ordem de grandeza, voltada realmente para os setores produtivos. Assim separamos os recursos do FNDCT [Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para as pesquisas básica e aplicada. Isso criaria uma cultura e um domínio científico e tecnológico que não estariam calibrados apenas pelas necessidades do mercado”.

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